Cena 1 - Tomada 3.
João, um desencarnado comum.
Humano comum em vida, humano comum
após a passagem final...
João deseja se comunicar por algum médium*
e, por isso, procura o departamento de treinamento de espíritos
comunicantes da Colônia Extrafísica onde vive.
Lá, é atendido por uma moça chamada
Joana.
- Pois não?
- Oi, meu nome é João. Vim aqui
porque quero me comunicar com o pessoal lá embaixo.
- Veio ao lugar certo. É só escolher
o seu arquétipo. Veja ali atrás. Cada porta é a sala de treinamento de um
deles.
João se vira e vê várias portas,
cada uma com uma placa com inscrições como, Exú, Pomba-Gira, Caboclo,
Preto-Velho.
Coçando a cabeça, ele retoma o diálogo
com a atendente...
- Hã, mas, que estranho...
- Já sei. Você tem preconceito com a
Umbanda, né? Eu entendo.
- Não. Não é isso. É que eu pensava
que poderia...
- Veja, tem outros também que você
pode, desculpe o trocadilho, “incorporar”.
Têm o arquétipo de Comandante Ashtar
Sheran, têm de alguém da equipe de Bezerra de Menezes, e também têm os
arquétipos hindus e chineses. Ah, é claro, sem falar no Saint Germain e
o pessoal da Fraternidade Branca, muito populares em certos círculos que eles
chamam de new age.
- Mas não posso baixar sendo eu
mesmo?
Percebendo que o rapaz era novato
nesse processo, Joana, tomada por compaixão, retruca:
- Olha, poder, pode, né? Mas já vai
ser difícil o médium aceita-lo, assim, de saída. E mesmo se conseguir,
ainda vai ser difícil o pessoal lá embaixo querer lhe ouvir.
- Ué, mas por quê?
- Ué, digo eu. Você não sabe? O
pessoal lá embaixo ainda espera algo fantástico na comunicação com os
“desencarnados”. Não importa qual seja a sua história, se não aparecer como
algum perfil que eles tenham expectativa e julgam importante, nem lhe ouvem.
Gente como você aparece a toda hora por aqui...
Vão lá, quebram a cara e depois
voltam para aprender os trejeitos, o tom de voz e a linguagem verbal e corporal
dos arquétipos que os encarnados esperam encontrar aqui. E como o que interessa
mesmo é que a mensagem seja dita e ouvida, o pessoal aqui já se acostumou e nem
liga muito pra isso. É só mais um tipo de carência que os “vivos encarnados”
ainda não se livraram.
Empolgada, a atendente toma um
fôlego profundo, para continuar enquanto observa João, que parece que perdeu o
seu, estupefato com o que ouve:
- Ninguém lá daria crédito para um Exu
que não fosse boca suja, nem a um preto-velho que não ficasse curvado, e
sem sotaque, entende? Ficariam desconfiados, achando que é animismo** do médium.
Eles transferem para cá o culto às aparências, que tanto distrai no plano
físico. E como a maioria não é clarividente e não sente as energias, precisam
desses elementos para ter certeza que estão frente à uma entidade “genuína” da
linha que simpatizam.
Mesmo os “genuínos”, ou seja, o
pessoal daqui que tem experiência nesses arquétipos, e, ao se apresentarem
assim, ativam certos processos energéticos úteis, têm que moldar levemente o
comportamento para serem aceitos lá. Se não eles mesmos correm o risco de serem
ignorados. Imagina alguém comum como você. O pessoal lá acha que gente dita,
comum, como eu e você, não tem nada a ensinar.
- Nossa! Mas que trabalheira.
- Pois é. E a expectativa não é só
de quem vai ouvir a comunicação, não. Os próprios médiuns, muitos deles,
também só se sentem a vontade se reproduzirem o padrão que aprenderam para cada
tipo de entidade.
Completamente travado, João não
consegue retrucar nada de inteligente, apenas balbuciar...
- Mas, caramba!
- Você nem sabe. Tem de tudo por
aqui. Iniciado egípcio se apresentando como preto-velho, Caboclo se
apresentando como médico em centro espírita, depois de novo como Caboclo em
centro de Umbanda. Tem até gente “de fora” da Terra entrando nesse esquema.
Aliás, têm um pessoal baixinho, magrinho, pele acinzentada e olhos grandes que
se diverte brincando de preto-velho e desfilando sabedoria. Você precisa ver!
Além disso, muitos aqui que tiveram
experiências em várias linhas espiritualistas em vidas passadas usam esse
recurso. Têm gente que foi iniciada na antiguidade, depois, em outra vida, foi
guerreiro; depois, médico, e que, puxando da memória, muda a forma e atua em
várias casas diferentes, conforme o padrão esperado em cada uma.
Orgulhosa com a mini-palestra que
deu ao rapaz e querendo terminar o papo, ela continua:
- E você? Não se lembra de alguma
vida passada que possa ser aproveitada para criar sua representação? Isso
facilitaria tudo.
- Putz, ainda não. Faz pouco
tempo que “descasquei”. Será que não poderia descer como eu mesmo?
Joana, já cansada de falar e vendo
que não iria conseguir fazer João desistir da ideia, se irritou:
- Ah, sei lá, menino! Olha, já está
formando fila atrás de você. Se quiser tenta assim mesmo, mas não diga que não
avisei - e fica parada olhando para ele com cara de “o que você ainda faz
parado aqui olhando para mim?”
Meio tonto e sem entender muito o
ocorrido, lá vai João procurar uma casa para “baixar” e trocar uma idéia com os
“vivos”.
Cena 2 - Tomada 3.
Corta para o plano físico, numa casa
de qualquer linha espiritualista, de uma cidade qualquer do país com pessoas
comuns se reunindo para o intercâmbio entre planos.
João aguarda uma oportunidade para
se aproximar de algum médium enquanto percebe, meio desconfiado, as
risadas camufladas dos espíritos que organizam o local.
Meio preocupado com a possibilidade
de Joana ter razão, ele se aproxima de um dos médiuns com quem sentiu
mais afinidade, por julgar parecer um cara comum como ele.
Imediatamente, o médium sente
uma presença estranha a ele. Não reconhece nem a identidade nem as energias. E
olha que ele já tem experiência com entidades de várias linhas diferentes. Mas
esse tipo de energia era novidade para ele.
Isso lhe causa uma sensação
esquisita, um desconforto que ele interpreta como sendo de alguma entidade
doente ou mal intencionada e, como aquele era o momento de receber os guias,
começa a travar o processo.
João, imediatamente sente o baque
energético. Passa então a buscar algum elo com o médium... Faz isso
procurando elementos de simpatia comum na aura*** dele, percebendo,
então, sem muita clareza, um símbolo, que imagina ser de alguma ordem esotérica.
Ou, quem sabe, seria algum símbolo do tal do Rei Ki, de que ele ouvira
falar?
Afiando sua atenção, ele nota mais
detalhes, reconhece o símbolo e vibra de alegria. O mesmo, na verdade, era de
um time de futebol, o Corinthians.
O médium é corintiano. E João, como
bom corintiano que fora em vida e tomado momentaneamente de euforia, grita:
- Vai Curíntiaaaa!
Nesse momento, algo inesperado
acontece... O médium sente um arrepio e, mesmo sem saber porque, passa a
sentir afinidade com o espírito, e relaxa. O incomodo passou e agora ele se
sente a vontade e começa a dar condições ao acoplamento mediúnico e sua
manifestação.
Imediatamente, um membro encarnado
do grupo, chamado José, se aproxima para a conversa:
- Bem vindo, irmão.
Incomodado com o “irmão”, mas de boa
vontade, João estende o punho fechado para um comprimento no melhor estilo
“mano”. Sem entender nada, José fica parado deixando João e o médium no
vácuo, gerando um momento desconfortável.
Recolhendo a mão, João tenta novamente:
- Opa, “firmeza”?
Meio sem graça, mas querendo parecer
descolado, o interlocutor responde:
- É, bem, firmeza. Quem é você? O
que deseja? Precisa de ajuda? Desculpe a indelicadeza, mas estávamos esperando
o Exu que normalmente trabalha com esse médium...
- Exu? Não sei quem é, não, mas tem
um cara aqui do lado olhando pra gente e morrendo de rir.
- É, deve ser ele mesmo. Já sei,
você desencarnou e está mal, não é?
- Não. Estou bem. Foi tranquilo. O
meu time foi campeão mundial e o meu coração corintiano não resistiu. Não
poderia ter morrido mais feliz.
- Bom, então, se não está mal, nem é
uma entidade muito sábia ou poderosa, e por isso não tem nada a nos ensinar,
por que não deixa a gente voltar para a nossa reunião?
- Ué, mas gente comum não pode
baixar?
- Olha, poder, pode né? Mas a gente
está esperando palavras de sabedoria das entidades que estamos acostumados a
receber aqui. Tem gente aqui precisando de uma palavra. E se não tem nada a
ensinar, é melhor dar espaço para quem tem.
Com a sensação de que já ouvira a
primeira frase antes, agora era João que estava se cansando de tanto
preconceito. E olha que disso ele entendia, afinal, nessa última vida, a única
que lembrava até então, João trabalhou de faxineiro em grandes corporações e,
mais tarde, tentando melhorar de vida, fez um curso técnico e conseguiu uma
vaga de atendente de telemarketing de empresa de telefonia móvel. Ou
seja, sobre ser ignorado ou maltratado, o menino tinha bastante experiência.
Resolveu então brincar, inspirado
pela entidade com cara de caveira que estava rindo ironicamente ao seu lado.
- Olha, quem sabe eu tenha algo,
sim. Talvez algo sobre humildade. Vocês aí embaixo mal se suportam no dia a dia
e, na hora da reunião, querem falar só com gente “importante”.
- Você está insinuando que não somos
humildes aqui? Pois fique sabendo que somos trabalhadores do Cristo. Olha
rapaz, paciência tem limite...
- Tem mesmo, e a sua parece ser bem
pequena não é? Tá aí, podemos falar também sobre paciência. Aprendi bastante na
última vida.
Querendo retomar o controle da
conversa, o encarnado apelou para o sarcasmo:
- É mesmo? O que você foi,
algum tipo de monge?
Se sentindo cada vez mais lúcido,
mas sem saber por que, João respondeu.
- Mano, de uma certa forma, era como
se fosse. Nas minhas profissões, só me procuravam quando tinham algum problema,
queriam que eu fizesse milagre e depois me culpavam se o milagre não ocorria.
Fui lixeiro e atendente de telemarketing e, para piorar o
preconceito, ainda torcia para o Corinthians.
Enquanto me via como inferior por
não ter tido acesso a educação de qualidade nem nascer em família rica, só
sofri, inclusive porque, em reação, ao mesmo tempo via esses que me ignoravam
como inferiores.
Foi só quando passei a enxergar em
mim e no outro o mesmo valor, independente de qualquer condição financeira, de
aparência, ou nome é que comecei a ficar em paz.
Quando fui lixeiro, percebi que a
minha profissão tinha tanto valor para a sociedade quanto outras de maior prestígio
e mais remuneração, e fiquei em paz com a atividade, mesmo achando que
merecíamos mais reconhecimento e melhores condições.
Aprendi que importa menos o que a
gente faz, e mais o valor que enxergamos naquilo e em nós mesmos quando estamos
ali.
Nesse momento, João se sente ainda
mais lúcido e com uma sensação gostosa no peito. Sente também que têm alguém
que ele não consegue enxergar prestando atenção nele.
Ao mesmo tempo, o médium
também sente a mesma coisa e, aproveitando que também se incomodava com as
amarras e convenções que sentia limitarem o aprendizado mútuo no intercâmbio
mediúnico, dá vazão máxima a João...
- Depois, como atendente de telemarketing,
acabei levando esse aprendizado para as relações. Procurava tratar as pessoas
com respeito, mesmo quando era maltratado, quase sempre por problemas fora do
meu alcance e responsabilidade.
Só que aí, meu atendimento começou a
ficar mais humano e começou a dificultar a minha presença lá, pois eles não
queiram alguém assim. Queriam alguém que se portasse como uma máquina e não se
importasse com a pessoa do outro lado. Como trabalhávamos muito e ganhávamos
pouco, ninguém gostava daquele emprego; e eu, como aprendi a gostar, comecei a
ser mal visto também pelos colegas.
Foi nessa época que o meu Timão
chegou ao final do Mundial... E aqui estou.
A essa altura, mais pessoas já
tinham se aproximado para ouvir a conversa e o próprio interlocutor inicial já
tinha mudado de atitude, também por ver que estava sendo observado pelos outros
colegas.
- Reconheço sua sabedoria, irmão,
volte sempre que quiser.
João, então, querendo se despedir em
grande estilo, mandou:
- Aí! Não sou seu irmão, ok.? Aqui
“nóis é mano, cértu”?
José, se sentindo como um jogador da
seleção brasileira na semifinal da copa de 2014, numa última tentativa de sair
por cima da lavada que levou, estende o punho fechado para reproduzir o
comprimento inicial que não tinha correspondido.
E João, então no último lance, faz
um sinal de “V” com os dedos indicador e médio da mão direita e, batendo essa
no peito, no melhor estilo “mano da fiel”, deixa desta vez José no vácuo, e
desacopla do médium, enquanto algumas pessoas pensavam ser esse algum mudra****
iniciático antigo.
Cena 3 - Tomada 3.
No setor de treinamento de
incorporação da Colônia Extrafísica, Joana vê João se aproximando e, antes que
ele pudesse dizer qualquer coisa, mandou:
- Então, aprendeu? Não diga que não
avisei. Qual vai escolher?
- Na verdade, nenhum, moça. Foi bem
legal lá embaixo. Depois, conversando com os guias espirituais da casa, me
falaram que vão propor abrir mais um setor, o de gente comum, e me propuseram
trabalhar aqui atendendo às pessoas também. Parece que vamos ser colegas de
trabalho. “Da hora!”
Renato Soares Stella
São Paulo, 14 de janeiro de 2015.
São Paulo, 14 de janeiro de 2015.
*Renato Stella é músico, espiritualista e participante do Grupo de Estudos e Assistência Espiritual do IPPB (www.ippb.org.br).
- Notas do
Texto:
* Médium - do latim, intermediário –
é o indivíduo que tem a capacidade supranormal de perceber os seres
extrafísicos e de servir de canal interplanos para eles se comunicarem com os
níveis mais densos.
Obs.: Mediunidade – É o conjunto dos
fenômenos parapsíquicos manifestado pelo indivíduo (médium) sob a influência de
seres extrafísicos.
** Animismo – do latim, animus -
alma – conjunto de fenômenos parapsíquicos produzidos pela própria pessoa, sem
interferência externa.
*** Aura – do latim, aura - sopro de
ar – halo luminoso de distintas cores que envolve o corpo físico e que reflete,
energeticamente, o que o indivíduo pensa, sente e vivencia no seu mundo íntimo;
psicosfera; campo energético.
**** Mudrás – do sânscrito - são os
gestos simbólicos feito com as mãos, significando, literalmente, gesto, selo,
senha ou chave. Provém da raiz mud, que significa alegrar-se, ou gostar de
algo.
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